A gaiola

Cem e um, cem e dois. O vizinho de casa tinha posto música jazz. Cem e cinco, cem e seis, cem e sete. O volume está muito alto, trata-se de um pianista. Um raio de sol atravessa a janela do quarto, a revelar as marcas de uma lavagem demasiado apressada das suas vidraças, a demonstrar que apenas a parte inferior tinha sido limpa: a parte superior é demasiado difícil de alcançar. Cento e dezasseis, cento e dezassete, cento e dezoito. A luz bate no lado direito da secretária, a deixar a cadeira e a pessoa sentada sobre ela na sombra. Os seus braços estão cruzados sobre a secretária, onde descansa a cabeça com o seu cabelo desarrumado que chega até aos ombros. A palma da sua mão direita permanece totalmente colada à superfície da mesa, a deixar apenas o seu dedo mindinho para bater o ritmo que vem da sala ao lado. Cento e vinte e quatro, cento e vinte e cinco, cento e vinte e seis, cento e vinte e sete. Agora o dedo mindinho muda de ritmo, parece seguir uma nova música. Cento e trinta e um, cento e trinta e dois. Certamente é um ritmo peculiar, porque os dedos que batem na secretária passaram a ser quatro. Todos excepto o polegar. Não é música, é impaciência. Escrever música deveria ser o resultado da impaciência; no entanto, a música é apenas o produto da paciência, do cuidado, do tempo. Talvez Ele esteja a pensar nisso também. Ou será uma Ela? Quem é esta pessoa que está a gastar cento e quarenta e quatro, cento e quarenta e cinco, cento e quarenta e seis segundos, com os olhos abertos, nesta posição? Talvez esteja a pensar? Nunca saberemos. Pois ao aproximarmo-nos do seu rosto, coberto pelos seus braços, parecemos entrever uma testa larga e distendida, como o seu pai. Se nos virarmos, notamos que o seu corpo é alto, seco, como a sua mãe. Se nos aproximamos, vemos um rosto triste, com toda a certeza molhado. Mas não podemos dizer mais nada, porque permanecemos em silêncio, apenas para perceber que o bater dos dedos na mesa equivale à duração de um segundo. Os quatro dedos descansam em sequência e estamos a cento e cinquenta e nove; dedos que se levantam novamente, cento e sessenta; dedos que se levantam novamente, cento e sessenta e um. Entretanto, a luz move-se cada vez mais para a direita, a iluminar parte da sua cabeça, com o cabelo escuro, ligeiramente ondulado. À volta da sua figura, o ar é pesado. Certamente não foi mudado desde que acordou. A luz desloca-se agora para o centro da mesa onde, em frente dos braços cruzados, se encontra uma caixa. Cento e setenta e cinco, cento e setenta e seis, cento e setenta e sete. Não é uma caixa, é uma gaiola. Claro que é uma gaiola: 15 cm por 13 cm por 20 cm. Tem pequenas barras que cobrem os seus quatro lados, por baixo está fechada, por cima tem uma pequena porta com um temporizador. Sim, parece o clássico temporizador do forno, o temporizador do microondas. E é de lá que vem o ritmo. Cento e noventa, cento e noventa e um, cento e noventa e dois. Dentro da gaiola está um telemóvel, que se acende continuamente. Não são mensagens mas notificações: um novo vídeo foi postado, os correios eletrónicos chegaram, há atualizações de Fantasy football e outros jogos descarregados. E, entretanto, estamos em duzentos e dez, duzentos e onze, duzentos e doze. Agora a gaiola de plástico está completamente iluminada. Lentamente a cabeça sobe, para depois descansar apenas de um lado, no cotovelo direito. Os seus braços permanecem cruzados sobre a mesa. Entrevemos assim um olho verde com manchas amarelas: como o seu pai. Vemos assim sardas tímidas sob uma olheira muito pronunciada: como a sua mãe. Duzentos e trinta. Pequenas gotas cristalizam a parte exposta da sua testa, e correm pela sua cara, os seus cílios a barrar o seu caminho. Até as suas mãos deixam marcas de suor sobre a secretária. Será que ele vai ter calor? Frio? Duzentos e cinquenta. A perna direita começa a dançar, duzentos e sessenta. O olho fecha-se. Duzentos e setenta. Um braço distende-se, duzentos e oitenta. A mão agarra a gaiola, duzentos e noventa. É isto, finalmente, o rosto será revelado, conheceremos a identidade do personagem da história. Trezentos. A gaiola começa a tremer, o temporizador termina de contar os segundos. A mão direita abre a gaiola, o rosto permanece brevemente exposto. Poderemos finalmente ver o seu rosto, compreender quem é, mas não temos tempo para isso. Ele pega no seu telemóvel, trá-lo à frente dos seus olhos e sorri. Ele diz em voz baixa: “Cada vez melhor”. A gaiola fecha-se novamente: um novo recorde foi batido. Trezentos segundos sem usar o telemóvel, trezentos segundos de abstinência. E agora que o ecrã está de volta à frente dos seus olhos favoritos, duas horas passam em paz, agachado e deitado sobre a mesma mesa, onde cinco minutos tinham parecido uma eternidade.

Pubblicato da Grandi Storielle

Siamo sei ragazze, Carola, Celia, Hannah, Livia, Morena e Sara che si sono conosciute in Erasmus a Chambéry e hanno ora deciso di mettere a disposizione la loro piccola ma grande arte per tutti.

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